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Rio Grande,18/05/2024

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Samuel Ferreira

Carnaval: Controle Social ou Resiliência Popular?

O racismo estrutural através das diversas legislações, governantes e autoridades, reprimiram e reprimem ainda as manifestações dos negros e negras na sociedade brasileira.


Carnaval: Controle Social ou Resiliência Popular?

Carnaval: Controle Social ou Resiliência Popular?


O carnaval tem vários possíveis arquétipos e nascedouros. Etimologicamente falando, pode ter nascido durante a Idade Antiga Clássica, nas manifestações festivas greco-romanas aonde se comia muita carne (Carnualia) em uma tentativa de se festejar a fartura de alimentos dessa origem (semelhante ao que era o Halloween antigo). Ainda entre os gregos, mas com raízes egípcias, o carnaval poder ter sido derivado do ritual Carrus Navalis , uma espécie de festividade à deusa Ísis, que remonta ao Egito Antigo mas celebrada por gregos e romanos. Nessa festa, faziam-se barcos decorados para essa deusa nos mares e rios. Algo semelhante ao que se faz atualmente para Nossa Senhora dos Navegantes e Yemanjá. 

Carnaval pode ter tido outras duas origens, etimologicamente também oriundas do latim, vindas também da Europa só que durante a Idade Média, período em que a Igreja Católica exercia com grande força o seu poder política através de seus calendários religiosos sobre as populações. Carne Vale (Adeus à Carne ) e Carne Levare (Levantar a Carne) são ambas expressões de um período de 3 ou 6 dias (dependia de que lugar na Europa estávamos falando) que antecedia a Quaresma, período importantíssimo para os cristãos católicos, pois são 40 dias que antecedem a Páscoa. 

Nesse período de 3 ou 6 dias de Carne Vale ou Carne Levare, permitia-se que o povo exercesse sua pecaminosidade, ou seja, fizesse uso da luxúria, da gula, permitindo que o povo se embriagasse e realizasse outros desejos e fantasias (aqui , no sentido duplo), na tentativa de não realizar esses pecados durante os outros dias do ano. Essa era  uma importante estratégia para tentar controlar a vida dos indivíduos dessa sociedade, numa tentativa de elaborar uma espécie de “válvula de escape” social e anual. 

Sabe-se que durante esses períodos na Europa, as festas serviam também para que as pessoas pudessem  cantar, encenar e fantasiar a satirização e a humilhação de figuras como o Papa, Reis, Senhores Feudais e outras autoridades poderosas sem receber nenhuma retaliação. É importante ressaltar que, essas festividades eram realizadas em meados de fevereiro, período que coincide com o fim do inverno e do frio extremo, ligados diretamente à morte e a escassez de alimentos, seguido (no caso do Hemisfério Norte) com a primavera, sinônimo de fertilidade, boas colheitas e fartura de alimentos. 

Viajando alguns séculos, chegamos ao Brasil, onde o carnaval é uma grande festividade com vitrine nacional e internacional. Carnaval é símbolo de folia, de extravagância, muita bebida, libertinagem, sensualidade e diversão. O carnaval em si, como grande festa nacional, é um dos símbolos turísticos de uma brasilidade exótica, idealizada e  exportada. Em suma, também é um período de “válvula de escape” para a população. Brinca-se muito inclusive que no Brasil, o ano só começa após o Carnaval.

Para alguns, o Carnaval é uma espécie de estratégia de controle social , de alienação do povo, uma espécie de “cortina de fumaça” que esconde os principais problemas sociais, econômicos e políticos que temos em nossa sociedade. Fala isso também, na mesma medida, do futebol. Sem fazer nenhuma análise do que representa o futebol como experiência de lazer de classe e etc.

Portanto, é necessário acrescentar nessa reflexão outro aspecto dessa manifestação cultural: No caso do Brasil em específico é impossível falar de carnaval sem falar de componentes étnicos e raciais, ou seja, o carnaval em si e o seu sentido está intrinsecamente relacionado com experiências e vivências da negritude. Na História do Brasil, o carnaval entrou e saiu da legalidade assim como entraram e saíram a capoeira e as manifestações religiosas afrodescendentes.  O racismo estrutural através das diversas legislações, governantes e autoridades, reprimiram e reprimem ainda as manifestações dos negros e negras na sociedade brasileira. 

Certamente que na atualidade, aquelas manifestações que não podem ser tidas como ilegais ou impedidas de serem realizadas sofrem repressões e criminalizações de diversas formas, de modo mais tácito e sorrateiro, mas ainda assim sofrem. No meu ponto de vista como cidadão brasileiro e também historiador, o carnaval não é somente um modo de alienação ou uma forma de esconder ou de não resolver os problemas que temos em nossa sociedade. O carnaval foi uma forma e é uma das inúmeras maneiras de resistir, de forma subjetiva e objetiva, as várias tentantivas e formas de domínio, de violência, de apagamento e de silenciamento da expressão popular, dos mais pobres , dos mais vulneráveis e principalmente daqueles que sofreram e sofrem com o racismo. O carnaval, assim como a capoeira, as religiões de matriz africana e o samba permitiram que o povo preto, negro, cigano,  indígena e seus descendentes, sobrevivessem e contassem a suas histórias e levantassem os seus monumentos em meio a tanta exploração, marginalização e silenciamento.

Não quero romantizar as manifestações culturais e sociais da atualidade e nem de nenhum período. Como historiador, estou impedido de fazer isso. Mas preciso apontar que os conflitos e problemáticas que existem durante o carnaval, são consequências da própria sociedade em que estamos inseridos. Se vivemos em uma  sociedade violenta, nossas festas e manifestações também tenderão para a violência. Vemos isso de maneira muito forte  na historiografia européia, pois aonde a Igreja Católica exercia uma violenta cobrança e rígida penitência, mais agressiva e conflituosa eram os períodos de Carne Vale. Quanto mais violenta era a Igreja, mais violenta era a manifestação de sua população. 

Para concluir, quero afirmar que o carnaval realmente só faz sentido para quem tem uma vivência popular, para quem vive a negritude ou consegue ser abraçado ou ter alguma relação de afeto para com ela. Ou seja, como me falou uma amiga minha chamada Juliana Dutra: “o carnaval é também uma experiência com recorte de classe, com experiência popular e com vivência na e com a negritude.” Sinceramente, se você não experimentou ou não experimenta isso em alguma parte de sua experiência de vida, não tem como o carnaval fazer sentido para você.

Para alegria de uns e para a tristeza de outros, que bom que o carnaval existe. 

Feliz Ano Novo !



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