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Rio Grande,03/07/2025

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Luiz Pereira das Neves Neto

Identidade em construção X século do pertencimento: o que eu consumo é o que sou? Ou só desejo o que me é imposto?

Vivemos em uma era marcada por uma contradição silenciosa, mas poderosa: de um lado, somos incentivados a "ser quem somos", a buscar autenticidade, a expressar nossa individualidade. De outro, estamos imersos em um mar de influências que moldam – muitas vezes sem que percebamos – nossos desejos, gostos e até mesmo nossas crenças. Essa é a tensão central do chamado século do pertencimento.

Nunca se falou tanto sobre identidade. Identidade de gênero, cultural, digital, territorial. Mas, ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil sustentar uma identidade sem se sentir pressionado a pertencer a algo – a um grupo, a uma marca, a um estilo de vida. A lógica é sutil: você consome X porque gosta de X, ou você gosta de X porque todo mundo consome X?

Segundo Zygmunt Bauman, sociólogo polonês conhecido por sua análise da modernidade líquida, vivemos tempos em que as identidades se tornaram flexíveis, mutáveis e constantemente reconstruídas. O sujeito contemporâneo precisa “escolher” quem é o tempo todo – mas dentro de um cardápio limitado pelas forças do mercado e da cultura midiática. Bauman destaca que, na sociedade de consumo, “você é aquilo que consegue comprar”, e o pertencimento passa a ser adquirido via consumo.

A publicidade, os algoritmos, as redes sociais e os grandes conglomerados midiáticos atuam como verdadeiros engenheiros de desejo. Eles nos apresentam produtos, estilos, ideais de corpo e até ideologias políticas como "escolhas livres". Mas até que ponto essas escolhas são realmente nossas?

Pierre Bourdieu, outro nome incontornável nesse debate, apontava que nossos gostos – aquilo que supomos ser mais “nosso” – são, em grande parte, resultados de condicionamentos sociais. O que consumimos e admiramos está ligado ao nosso habitus, ou seja, ao conjunto de disposições culturais que herdamos e reproduzimos, mesmo sem perceber. Assim, gostos e preferências também expressam posições sociais – e não meras escolhas autênticas.

Seja na roupa que vestimos, no celular que compramos ou nas músicas que ouvimos, nossas decisões de consumo estão entrelaçadas com a necessidade de pertencimento. O medo de parecer ultrapassado, de não "fazer parte", transforma a identidade em algo que precisa ser constantemente atualizado – como se fôssemos aplicativos em eterna versão beta.

Stuart Hall, teórico cultural jamaicano-britânico, reforça que a identidade não é algo fixo, mas uma “celebração de instabilidades”. Para ele, os sujeitos modernos estão sempre em processo de transformação, num diálogo constante entre o que são, o que desejam ser e o que esperam que os outros vejam neles. Essa fluidez, embora libertadora em certo aspecto, também nos expõe à ansiedade da performatividade e à vulnerabilidade diante de discursos hegemônicos.

E isso não vale apenas para o que consumimos materialmente. Nossas ideias e posicionamentos também passam a ser commodities. Tornam-se bandeiras que compramos e vendemos nas vitrines virtuais, buscando aprovação e reforço positivo. O perigo é cair na armadilha de pensar que somos o que publicamos ou que nosso valor depende de quantas curtidas recebemos.

Então, a pergunta permanece: eu desejo porque quero ou porque me disseram que eu deveria querer?

A saída não é parar de consumir. Isso seria impossível. A questão é cultivar consciência crítica. Como propõe Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, o sujeito contemporâneo está exausto de ser ele mesmo o próprio projeto – autovigiado, autoconsumido e autogerido. Nessa lógica, resistir ao fluxo é recuperar o tempo da escuta, da contemplação e da escolha consciente.

É possível – e necessário – escolher com mais autonomia, questionar padrões, revisitar nossos gostos e perguntar: isso me representa ou só me preenche temporariamente?

Construir identidade é um processo contínuo, que exige coragem para se reconhecer inacabado e liberdade para não seguir o fluxo quando ele não faz sentido. No século do pertencimento, talvez o maior ato de resistência seja pertencer a si mesmo.




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